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Para além das fronteiras do berço, por Fernando Baggio

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Por Fernando Baggio

Vivo agora nas terras de Camões (e de Cabral) sem me distanciar daquilo que moldou boa parte da minha essência e me carrega de existência: o samba. Tão logo aqui cheguei já fui procurar se havia, quem era e onde estava o samba cá nas terras lusitanas. Para minha alegria, sim, encontrei e não foi pouco. Portugal tem samba, tem escola de samba, tem carnaval, sim senhor.

No momento em que escrevo estou completamente tocado por algo que presenciei nos dias 27 e 28 de Setembro: o 17º Festival de Samba de Estarreja. Lá estiveram presentes nada menos que dez escolas de samba e alguns grupos de samba (grupos de samba raiz, pagode e MPB). Entre esses grupos estava o Samba Lelê, que comemorou 46 anos de idade e totalmente português. No comando do grupo está um cardeal do samba português, Xando Lopes.

O festival é organizado pela Escola de Samba Vai Quem Quer, fundada em 1987 na cidade de Estarreja. Estarreja é conhecida como a capital do samba de Portugal. Acontece lá a competição hoje mais bem organizada e com escolas de samba de grande porte para os padrões portugueses. Lá eles possuem um local onde é feito uma avenida durante os dias de carnaval que tem 12 metros de largura e 290 metros de comprimento. As arquibancadas comportam cerca de 7 mil pessoas por noite e ainda tem o setor final onde são montados duas bancadas em que as pessoas ficam em pé bem na área da dispersão. A iluminação também é montada especificamente para os desfiles. Mas a avenida não é sonorizada e os quase 300 metros recebem apenas o som do carro de som. Cada escola faz três desfiles (um à noite, um durante o dia e um ao entardecer) e são julgadas em todos os desfile (doidera!).

E não apenas em Estarreja há carnaval e escolas de samba. Também em Ovar, Figueira da Foz e Mealhada possuem excelentes escolas de samba e acirradas competições. Todas essas cidades são praticamente vizinhas, estando em uma mesma região, próximas à cidade do Porto. No sul do país, em uma lindíssima cidade praiana que fica na região de Setúbal (40Km de Lisboa) encontra-se Sesimbra, onde acontece outro grande carnaval e possui as mais antigas escolas de samba de Portugal, como o Bota no Rego e o Trepa no Coqueiro, fundadas em 1976 e 1978 respectivamente. Pouco à pouco vou nesse espaço contando um pouco mais sobre cada um desses carnavais, escolas e eventos que aqui ocorrem, desta vez vou contar um pouco mais sobre o 17º Festival de Samba de Estarreja.

Não foi fácil ver e ouvir esse samba todo e tentar me lembrar que eu não estava no Brasil e nem eram brasileiros a fazer o samba ali. Sim, há brasileiros, mas são poucos, pouquíssimos em cada escola ou grupo de samba. A maioria nem tem brasileiros e fazem um trabalho fantástico. O festival teve dois dias, sendo que o primeiro dia teve início à noite e teve uma abertura que foi um flash mob feita para escola Vai Quem Quer, na sequência foram mais três grades shows de samba. O projeto do Mestre Porto, um brasileiro residente na cidade do Porto, que tem um belíssimo projeto social onde ele ensina percussão para jovens. O projeto se chama Batucada Radical, que também é o mesmo nome do grupo que lá se apresentou. Depois foi o grande show do Samba Lelê, e para finalizar o grupo Samba do B, que já faz muito sucessor em Portugal.

No segundo dia a programação começou com duas palestras. A primeira foi do carnavalesco da escola Vai Quem Quer, Juan Rodríguez. Juan é venezuelano e vive já em Portugal há muitos anos. Grande artista que é, fotógrafo, faz belíssimos carnavais. Em sua palestra ele conduziu um verdadeiro bate-papo onde contou um pouco como pensa e trabalha. Foi riquíssimo para eu poder entender um pouco como trabalham, quais dificuldades têm, quais caminhos percorrem. Um fato interessante que ele nos contou foi sobre a dificuldade de construir alas e fantasias para contar uma história em um grupo pequeno de pessoas onde a maioria são passistas. Sim, grande parte das escolas de Portugal possuem a maioria das alas constituídas por passistas. No Vai Quem Quer se faz Carnaval com Comissão de Frente, Casal de Mestre Sala e Porta Bandeira, Bateria, Ala Musical, Baianas e as alas de passistas (que são cerca de 5 alas), duas alegorias (mas até o momento só se julga uma), num total de quase 200 pessoas na escola toda. Sua dificuldade é contar a história nesse pequeno contingente onde a maioria possui roupas tão diminutas. Mas ele é perfeccionista e desenha muito, muito bem. Ele disponibilizou seus desenhos para que passássemos de mão em mão e pudéssemos ver com detalhes seus projetos. Lindos! Vale dizer que ele pode aqui trabalhar por cerca de 3 anos com o mestre Raul Diniz (que hoje vive em Espanha) e dividiu o trabalho no Vai Quem Quer com Juan.

Depois eu apresentei uma palestra onde trouxe um pouco da história da formação do samba e do carnaval em São Paulo, falei sobre a organização do carnaval da cidade de São Paulo e sobre julgamento. Em Estarreja o julgamento é bem diferente, há um jurado que julga dois quesitos. São oito quesitos e um total de quatro jurados. Julga-se Bateria + Samba Enredo, Comissão de Frente + Casal, Fantasia + Alegoria e Harmonia + Conjunto. Não tem especificamente os quesitos Enredo e Evolução, o que me deixou muito curioso. Os conceitos desses dois quesitos estão mais ou menos inseridos em Conjunto e Harmonia, mas não exatamente da mesma forma. Outra particularidade é que as escolas até o ano de 2018 nunca sabiam os os jurados estariam. Nesse último carnaval foi construída uma plataforma para eles ficarem, mas não eram obrigados a ficar lá. Ou seja, poderiam até lá estarem os jurados, mas poderiam não estar! De forma que foi muito produtivo trocar essas experiências com os sambistas portugueses. Durante minha palestra estavam presentes componentes de muitas escolas, além do presidente da Associação de Carnaval que organiza o Carnaval de Estarreja e a a Vereadora de Cultura (cargo análogo a Secretária de Cultura).

À tarde houve um workshop de dança de Gafieira conduzidas por um exímio casal de bailarinos residentes na cidade do Porto, Aide Quiroz e Edu Holanda.

A noite começou com o show do Samba dos Amigos (no qual eu fui gentilmente convidado a tocar). O Samba dos Amigos é um projeto do músico português Diogo Pinho, outro sambista de primeira. E depois seguiu-se com a apresentação das escolas de samba. Todas elas se apresentaram em um formato similar, ala musical (sobre o palco), bateria (que ficava em um palanque tipo “arquibancada” ao lado do palco). No palco as escolas exibiam números com suas alas de passistas, todas lindamente fantasiadas, seus respectivos casais e a rainha da bateria. Era um espetáculo atrás do outro em um nível muito bom mesmo. Se apresentaram as escolas Costa de Prata (1982, de Ovar), A Rainha (1995 de Figueira da Foz), Unidos do Mato Grosso (2002, Figueira da Foz), Tribal (2011, de Estarreja), Trepa no Coqueiro (1988, Estarreja), Os Morenos (1988, Estarreja), Bota (1976, Sesimbra), Batuque (1988, Mealhada), Amigos da Tijuca (2004, Mealhada), Sócios da Mangueira (1978, Mealhada) e Vai Quem Quer (1987, Estarreja). A noite ainda foi encerrada com o show do grupo Samba Modificado, da cantora brasileira radicada no Porto, Inah Santos.

As escolas deram um show! Muita dança, samba nos pés, batuque na veia! A platéia ainda contava com a presença mais do que ilustre de ninguém menos que Mestre Odilon, que veio para apadrinhar a bateria da escola de samba Trepa no Coqueiro. Eu e Mestre Odilon estávamos no mesmo hotel e tive o prazer de ainda conversar muito com um dos maiores de todos os tempos. Mestre Odilon corrobora com o que eu disse: “Aqui tem samba de verdade, ritmista que tocaria em qualquer bateria do Brasil. Impressionante”, me confessou o mestre durante nosso café da manhã.

E sim, ele tem razão, a qualidade é suprema. Cada bateria se apresentou com um contingente que variava entre 20 a 50 ritmistas. A base é a mesmíssima do Brasil. O GRES Bota leva cuíca (a única com o instrumento nesse dia). Surdos (1ª, 2ª e 3ª) Repinique, Mor, Caixa, Tamborim, Chocalho e agogô compõem a maioria das baterias. No repertório quase todas tocam um samba do Rio de Janeiro, também seus próprios sambas e hinos. E duas tocaram sambas de São Paulo: Batuque tocou Mocidade Alegre (samba desse ano). Vai Quem Quer tocou Vila Maria (Peru). Tocam IGUAL! Mesmo arranjo, introdução bossa e até o arranjo da bateria do Mestre Moleza que entrou no final do CD. Coisa impressionante. Nuno Bastos, grandíssimo sambista e compositor português (por favor, pesquisem sobre esse grande artista), é também mestre de bateria do Vai Quem Quer. Ele me disse que foi ele quem introduziu os sambas de São Paulo nos Festivais de Samba de Portugal. Já tocou Vai Vai (duas vezes) e Tatuapé (África). Esse ano ele escolheu Vila Maria. Disse que escolhe não apenas pelo samba mas para trazer os enormes desafios dos arranjos que as baterias trazem. E disse que A Cadência da Vila trouxe para ele e seus ritmistas o maior trabalho que já teve. Ao final de toda escola havia um show da bateria, com uma arranjo recheado de bossas que me fez lembrar as competições de Baterias Universitárias.

Nuno Duarte, jovem presidente da multi-campeã Vai Quem Quer, que também me fez o convite para participar do festival, me explicou que há muitos festivais como esse na Europa, onde as escolas se apresentam mais ou menos no mesmo formato. Curioso é que Nuno, presidente da escola e organizador do Festival, durante a apresentação de sua escola ele estava… tocando caixa na bateria de sua escola. Particularidades deliciosas de um universo do amor pelo samba.

Sai muito tocado e emocionado desses dois dias intensos de muito samba. Fiz muitas amizades, conheci brasileiros que vivem aqui e ajudam a divulgar o samba, como o grandíssimo percussionista Mauro Jorge e o grande 7 cordas Henrique Lima, brasiliense que vive no Porto há 2 anos. E muitos, muitos portugueses sambistas. Foi lindo ver como amam o samba tanto quanto nós. O respeito que eles têm pelo samba é brutal. Eu os vi por várias vezes dizer que, apesar do samba e o carnaval não ser um tradição deles, que eles o fazem com muito amor, dedicação e respeito. Ao final da apresentação do Vai Quem Quer vi uma cena que costumamos ver ao final dos desfiles no Anhembi, o casal de mestre sala e porta bandeira, Nestor e Débora Arrojado chorando, emocionados, ao descerem do palco. Uma prova de que por aqui os pelos também saltam da pele como se alma já não mais coubesse dentro do corpo.

Na minha palestra fiz questão de dizer que as tradições brasileiras do carnaval devem muito às tradições portuguesas da grande festa, onde o samba ganhou as ruas também inspirado nos modelos do Entrudo e dos Zé-Pereiras vindos daqui de Portugal. Dessa forma, em um gesto de demonstração de respeito e consideração por tudo que fazem aqui em Portugal pelo nosso samba, fiz questão de fortalecer esse elo importante que já atravessa mais de um século, desde os Entrudos até o os dias atuais. As escolas de samba são um fenômeno sócio-cultural da maior importância na nossa história, nosso maior marco civilizatório. O samba, as escolas de samba e o carnaval mostra que sua existência e atravessam todos os cantos da terra para proporcionar beleza e grandeza, transformando e impactando muitas sociedades e comunidades.

Evoé Samba!

Botequim da SASP