Com o enredo “Prepare o seu coração: Jair Rodrigues, festa para o Rei Negro”, a Escola de Samba Pérola Negra não divulgou sinopse ao público para que a análise pudesse ser melhor desenvolvida. Porém, lançamos aqui uma tratativa-ensaio de levantamento de pontos relevantes que fazem jus o mérito acadêmico da comunidade da Vila Madalena.
O enredo é desenvolvido pelo carnavalesco Cebola, que tem apresentado ao longo de suas produções, alguns enredos biográficos, como Milton Nascimento e Elba Ramalho, na Tom Maior, Carlinhos Brown, no Camisa e o destaque desse segmento, consagrado pela crítica e pelo público, o desfile do Águia de Ouro, em 2013, em homenagem a João Nogueira.
Em 2023, a Escola propõe como regularidade de discurso realizar uma “coroação de coração” ao cantor Jair Rodrigues, atuando pela ótica da musicalidade produzida pelo artista e a negritude, nos vieses de racialidades e afro-religiosidades, sendo corado, assim, como o Rei Negro.
Promovo tentativa de realizar um ensaio de setorização do desfile, através da narrativa proposta pelo samba de autoria de Turko, Rafa do Cavaco, Maradona e Fabio Souza, que concedem pistas.
O primeiro setor deve retratar as origens da sua musicalidade, que é a sertaneja-caipira:
Eu sou…. A verdadeira moda pantaneira
Peguei a viola, a sanfona vai chorar
Vem do sertão toda minha raiz
O meu caminho o sob a luz do luar
No segundo setor, poderá ser retratado mais aspectos da musicalidade de Jair, sua relação com festivais de canções, gravações de letras épicas e sua relação profissional com Elis Regina na TV Record no programa “O fino da Bossa”:
A minha voz fez o povo cantar
Canções que embalaram festivais
Pequena notável a inseparável
Da bossa nova aos musicais
Quero uma rede preguiçosa pra deitar
Em sinfonia eternizar
A “Majestade, O Sabiá”
O terceiro e último setor, deve abordar a relação de amor de Jair Rodrigues com o samba carioca, mais especificamente com a Escola de Samba Salgueiro. Em 1971, o artista gravou o samba-enredo Festa para um Rei Negro, da agremiação. Em 2009, Jair Rodrigues gravou um DVD com grandes sambas do Salgueiro. Essa história de amor aparece no samba-enredo do Pérola:
Eu sou o samba…
A voz do morro que emana
Meu carnaval encanta o mundo inteiro
Salgueiro… Eterna Paixão
Marcado no meu coração
Há ainda durante a obra musical da Escola uma relação ou exaltação de elementos da afro-religiosidade no trecho:
Vou me banhar na cachoeira
Lavar a alma na Fé
Salve o Rei da mata meu Santo protetor
Oxossi caçador
O trecho acima do samba parece querer dialogar com a canção a majestade, o sabiá:
Tô indo agora tomar banho de cascata
Quero adentrar nas matas
Aonde Oxossi é o Deus
Aqui eu vejo plantas lindas e selvagens
Todas me dando passagem perfumando o corpo meu
Pelo exposto na análise, na visualidade, a agremiação deve caminhar com esses elementos destacados: o sertanejo caipira, a musicalidade e a sua ligação com o salgueiro. Não consigo compreender em que parte a alusão à Oxossi deve se encaixar no enredo, considerando que Jair não tinha inclinação afro-religiosa, todavia, porém, no Carnaval, a mágica vai muito além da fantasia e o narrador é soberano para fazer circular uma liberdade da história que vai para a avenida. Assim, penso que Oxossi, as águas, as matas, devam fazer parte do último setor, de exaltação à negritude pelo ponto firme do samba.
Quanto ao samba em si da agremiação, é uma obra que no refrão principal chama Jair para a comunidade da Vila Madalena. Cumpre sua finalidade com aspectos de poesia e lirismo. Entoa saudade, evoca uma cachoeira envolvente e rememora grandes clássicos da discografia do homenageado.
Como caminhos que sinto falta – pelo menos no que foi exposto no samba – sinto ausência de um Jair que é considerado o primeiro rapper brasileiro, isso além de ser importante do aspecto da memória, poderia ter enriquecido a obra musical e por sua vez culminaria no enriquecimento da performance bateria na avenida, com jogos de bossas e elementos que remeteriam ao rap. Além disso, essa abordagem – do rap – abriria muitos horizontes para diálogos visuais com a urbanidade cultural e contemporânea das grandes cidades.
Isso parece ser para mim um apagamento que fará muito falta no desfile.
O enredo da agremiação Pérola Negra, ainda assim, é muito relevante, é necessário para os diálogos que hoje se estabelecem na sociedade, é uma grande celebração cultural que fará uma justa coroação ao Rei Negro Jair. Pelos aspectos de relevância social, cultural, identidade, pertencimento, memória, racialidades e afro-religiosidade, se encaminha o mérito acadêmico Sambar à Escola de Samba Pérola Negra.
Autor: Tiago Freitas – Coordenador Geral/SAMBAR_SP
Este texto é resultado do projeto Mérito Acadêmico – Análise dos enredos e sambas do Carnaval 2023, organizado pelo grupo de estudos SAMBAR_SP.
Instragram: sambar_sp