Por Fábio Parra
Alguns sambistas mais emergentes posicionam-se contra a abordagem política no carnaval. Mas o que não é política?
Todos os enredos históricos são visceralmente políticos, a partir do momento em que falam de civilizações, impérios, de fatos marcantes da história ou quando homenageiam figuras ilustres. Com o endurecimento dos radicalismos em posições políticas, o que ocorre atualmente, na verdade, é a reação a qualquer enredo que tenha crítica social ou política que ofenda aos ultraconservadores. Mas o que foram Zumbi, Chico-Rei, Xica da Silva, senão subvertedores de uma ordem que oprimia, matava e coisificava o seu povo?
Até meados da década de 80, as escolas de samba, como qualquer outro empreendimento artístico, tinham que registrar seus enredos, sambas e figurinos na sede da Censura Federal, que em São Paulo ficava no Largo do Paissandu, no mesmo prédio que, posteriormente invadido, incendiou-se e desabou a pouco mais de 2 anos.
O registro mais famoso de censura a uma escola de samba em São Paulo ocorreu na década de 70, quando o Camisa Verde Branco foi proibido de desenvolver o enredo sobre João Cândido, Herói da Revolta da Chibata. O enredo só foi realizado quase três décadas depois, em 2003.
Vamos fazer um passeio por 30 enredos paulistanos, em ordem cronológica, que “causaram”, em diferentes graus, com a contundência de seus temas prá lá de questionadores, seja social ou politicamente. Verdadeiras aulas (tudo está linkado com o acervo SASP).
Com os últimos anos da Ditadura Militar, o Brasil vivia a sua Abertura Política lenta e gradual, e o Camisa Verde e Branco pode entoar versos com duras críticas ao ciclo escravagista como “achei uma bola de ferro/ presa a um elo de corrente/ tinha um osso de canela/ deu tristeza em minha mente/ esse osso de canela/ veio de outro continente”. Ou ainda “negro paga imposto/ negro vai à guerra/ negro ajudou a construir a nossa terra”.
Ainda na abertura lenta e gradual, a poderosíssima Nenê de Vila Matilde criticou em seu enredo a carestia (e astronômica inflação) dos “pacotões econômicos” do ministro Delfim Netto com os versos “Vou sonhar bem alto/ esquecendo a Madame Inflação/ o jogo está no asfalto/ abraçando a Senhora Ilusão”.
Primeiro enredo totalmente voltado para a crítica política, a Nenê de Vila Matilde falou do acesso de indígenas (como o deputado federal Cacique Mário Juruna) e negros ao Congresso Nacional, o sonho de ter um presidente da república negro e criticou duramente a grilagem de terras indígenas em versos como “Oh, meu senhor/ devolva minhas terras por favor…” Campeã na av. Tiradentes, a Nenê repetiu o recado no Desfile das Campeãs do Rio: única campeã paulistana a desfilar na Sapucaí!
Em 1986, a Nenê pode não ter sido bicampeã, mas a crítica política e econômica foi: Vai-Vai dominou a pista com um papo pra lá de reto com os versos: “espero que a Nova República melhore a situação/ fazendo valer sua força/ no combate à inflação/ quero ver o pulso firme contra a corrupção/ e um salário justo para toda nação”. Hoje esses versos parecem normais, mas imaginem a polêmica que era abordar esses assuntos, ainda no primeiro carnaval fora da Ditadura…
Faltando poucos meses para a promulgação da atual constituição, a Flor de Vila Dalila chegou chutou o pau da barraca com um excelente samba-enredo, cheio de dura críticas ao conturbado e corrupto cenário político-econômico da época: “promessa fica na promessa/ é hora de despertar/ chega de demagogia/ pra que tanta ironia/ o povo está cansado de esperar… “ ou “o leão (imposto de renda) virou hiena/ preocupado com a nação/ marajá de bolso largo nem abala o coração…”
Na febre inflacionária dos planos Cruzado 1, Cruzado 2, “fiscais do Sarney”, ORTNs, OTNs, URPs e do grande número de sambistas que viraram investidores de fundos de Open Market e Over Night, ensinados no Jornal da Globo pela comentarista Liliam Vitte Fibe, o Camisa foi campeão com um enredo que falava do dinheiro e das finanças tratando, pela primeira vez na história, a figura de D. joão IV deste modo: Aí todo mundo gastou/ sem lastro, sem reserva, a banca estourou/ D. João meteu a mão/ Sobrou para D. Pedro a primeira inflação (da nação)”. Reparem só no duplo sentido do caco: da nação… danação…
O enredo era sobre o café, mas trabalhado com muita irreverência: é sabido que as primeiras sementes e mudas de café que vieram para o Brasil foram roubadas por Melo Palheta, que fez uma expedição à Guiana Francesa, tornou-se amante de Madame d’Oliviers, primeira dama do lugar… Mas o enredo se entremeou em outros assuntos, como o martírio do seringalista Chico Mendes, o ouro de Serra Pelada, a destruição da floresta para plantar soja, e pasmem… o refrão do samba dizia “Eu não errei, bye-bye, bye-bye Sarney”. Detalhe: Sarney ainda era o presidente da República. Poucas semanas depois, Sarney deixaria saudade: O presidente Collor, recém empossado, confiscava a poupança de todos os brasileiros. Mas isso virou enredo em outra escola, e no ano seguinte…
Questionando toda a história da humanidade, a Nenê jogou duro, questionando se a estrela de Belém que guiou os Reis Magos não foi uma astronave, o papel de herói do Duque de Caxias, Carmen Miranda, que não era baiana e sim portuguesa… Mas foi na crítica política que o enredo sobre a mentira pegou pesado: a Vassoura de Jânio Quadros que não varreu nada, a duvidosa marcha da Família com Deus em Busca da Liberdade, o Milagre Brasileiro, o Proálcool e o Milagre Econômico.
O enredo ecológico foi desenvolvido com competência e brilho pela Leandro, mas mandando bronca em versos como “No Amazonas, a devassa é geral? S.O.S. ao nosso Pantanal”. Não adiantou muito: quem sobrevoa o Mato Grosso hoje sabe que não existe mais mato… é tudo soja…
O Plano Collor, de março de 1990, foi um dos episódios mais humilhantes que o povo brasileiro sofreu em sua política econômica. Uniu ricos e pobres na revolta, gerando o movimento dos “descamisados”. E quem diria, a Mocidade Alegre, já na época a escola mais preocupada com a postura e a elegância que se conhece, desceu do salto para protestar: fez um enredo sobre todas as vezes que o povo brasileiro foi enganado por planos econômicos: desde o saque de todo o ouro do Banco do Brasil em 1808 por D. João (antes de voltar para Portugal) até o Plano Collor, com uma alegoria ridicularizando a nada amada Ministra Zélia Cardoso de Mello…
E a Morada do Samba fez sua homenagem à imprensa brasileira relembrando o seu papel nos fatos que revolucionaram a história nacional: o Abolicionismo, a proclamação da República… Mas o setor mais polêmico ficou por conta da alegoria da Ditadura Militar: um imenso tanque de guerra com um soldado fazendo sinal de “psiu” passava por cima de máquinas de escrever, rádios, vitrolas, livros e tantos outros meios de comunicação. O desfile se encerrou dedicando a Pena de Ouro aos jornalistas em busca da verdade. Afinal, como diz o belo samba, “Voa, liberdade, vai com o vento/ não se pode bloquear o pensamento”.
O enredo, que homenageava a cidade de São Paulo através do viés astrológico (a cidade foi fundada sob o signo de aquário) trouxe um dos refrões mais populares e engajados do ano: “defender o meu arroz/ educar uma criança para não prender depois”. Apenas uma das muitas “aulas” que o compositor Grego nos presenteou na arte de compor sambas de enredo. “Olha a mensagem…”
O enredo sobre as navegações tinha um ingrediente que hoje irritaria os muitos terraplanistas: o abre-alas mostrava um Planeta Terra quadrado. E o planeta ia se arredondando a cada carro, conforme as descobertas científicas… O samba não perdoava: “Europa, do Velho Mundo achatado, por mares nunca navegados (…) de lá prá cá tudo mudou/ a Terra se arredondou…
O sétimo campeonato da escola do Bixiga foi marcado por um enredo prá lá de corajoso, falando do ouro, da riqueza e de outras coisas que valem tanto ou mais que ouro. Havia até uma ala chamada “Ouro Branco, em referência à cocaína. O samba não perdoava “É luxo, é lixo, é prazer… ouro de tolo/ sonhar com dólar, jorra petróleo, cartéis deitam e rolam…” O último carro, chamado a Galinha dos Ovos de Ouro, tinha esculturas gigantes do ex-presidente Fernando Collor de Melo e da ex-primeira-dama Rosane Collor. Faziam dois meses que ele havia renunciado, antes que se concluísse seu processo de Impeachment. E Collor voltou a ser criticado pelo Vai-Vai, alguns campeonatos depois… já veremos!
Um dos desfiles mais marcantes da história do Anhembi tratou do resgate da auto-estima, do valor cidadão e da vaidade dos negros brasileiros. O enredo nada romântico já dava seu recado nos primeiros versos: “vindos da África/ exportados sem querer…” E reafirmava a importância da contribuição negra no desenvolvimento de diversos setores da sociedade.
O belíssimo enredo da Gaviões sobre a rua tinha, em sua melhor alegoria, a representação da Praça Ramos de Azevedo, com a visão dos meninos de rua tomando banho no chafariz. Em contraponto, os versos do compositor Grego entoavam: luz da vida a criança/ vivendo em família, sem ter que fugir/ largando a calçada/ e tudo ou nada/ voltando a sorrir…
Precisa falar muito desse enredo? Os valores ensinados por um dos maiores educadores da história (e jamais postos em prática em grande escala aqui no Brasil, o país em que ele nasceu) fizeram o Anhembi amanhecer com Eliana de Lima entoando “mentes são dotadas de virtudes e poder/ basta abrir as portas, verá florescer/ um mundo onde a magia alcança os idais/ e o saber não se difere por camadas sociais…” Desfilaço com direito a retorno do Desfile das Campeãs!
O Carnaval de São Paulo no ano de 2000 foi temático para os 500 anos do Descobrimento do Brasil, onde cada escola, de acordo com o sorteio, teve que abordar um tópico linear da cronologia da história do país. No primeiro ano em que o Grupo Especial de Sampa foi dividido em dois dias, o Vai-Vai foi a última agremiação a desfilar no sábado, com seu tema pautado na Nova República e na esperança de um país melhor! Collor teve que ser lembrado, no potente refrão do meio: “Eu elegi um presidente/ colorido e diferente (vai… vai… vai… vai…)/ Me dei mal/ com fé e emoção/ pintei toda a nação/ aí eu caí no Real”… Destaque também para o carro do presidente Fernando Henrique Cardoso que tinha, como escultura principal, um cérebro gigante.
Assim como o sucesso de 1997, o enredo que marcou o último campeonato da escola de Vila Matilde veio engajado a mostrar a potência afro descendente muito além da arte e do futebol, enfatizando os escritores e cientistas negros.
Para falar do espírito questionador e vanguardista que marca a paulistanidade, a Águia de Ouro relembrou os revolucionários de 1932 e trouxe uma alegoria em que Getúlio Vargas era apresentado como uma marionete de Adolf Hitler. Houve protestos na véspera do desfile e a escola teve que reformar a alegoria que falava da influência nazifascista sobre a ditadura de Vargas: a grande suástica que ficava no fundo do carro foi transformada em uma janela. A letra do samba dava o recado na medida: “a democracia é nossa diferença/ vamos à luta, vamos sem pedir licença. Atual, não?
Buscando o bicampeonato, a Nenê contou a história dos conflitos de terra e a morosidade da Reforma agrária. O samba, um dos maiores sucessos do ano, tinha o refrão “divide esse chão/ eu quero plantar/ prá colher/ foi Deus quem deixou, pra mim, prá você/ sou Nenê”
A história de João Cândido, que em 1910 liderou a Revolta da Chibata (movimento contra os abusos morais e os castigos corporais impostos aos marinheiros), já havia sido censurada na Década de 70. O povo já conhecia a história graças ao clássico da MPB “O Mestre-Sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc e imortalizada na voz de Elis Regina. O samba que o Camisa apresentou foi magnífico. O que pouca gente sabe é que, para a Marinha do Brasil, João Candido ainda é reconhecido apenas como um rebelde indisciplinado que provocou um motim, estando longe de ser, oficialmente, um herói como de fato o é.
O belíssimo desfile que a Mancha apresentou, contou a história dos injustiçados desde Jesus Cristo. O refrão deu aula: “o mundo não vai me calar/ injustiças não vão me deter/ das cinzas se renasce prá vitória/ na adversidade se aprende a viver/ são fatos que descrevem nossa história…” Bem aventurada, a própria Mancha viu o futuro bom se revelar 13 anos depois, como campeoníssima de 2019!
“a nossa dignidade, 1º de maio/ conquista universal/ quero ter o meu direito/ chega de exploração/ com licença, eu vou à luta/ faço greve e vou prá rua/ digo não à opressão”, cantavam os versos de Didi, Turko, Maradona e Diego Poesia. O impressionante visual proposto por Marco Aurélio Ruffin mostrou, entre as originais alegorias, a opressão dos relógios sobre os trabalhadores e o célebre incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist (Nova York) em 1911, onde 129 mulheres morreram.
Não tinha como falar de Angola e de Martinho da Vila sem falar de revoluções e lutas pela liberdade, não é mesmo? O desfile iniciou logo com a impressionante visão de uma Angola devastada pelas lutas que viveu para se livrar da opressão colonialista. O contagiante samba-enredo foi cantado alto pelas arquibancadas.
A homenagem da Gaviões ao ex-presidente Luís Ignácio Lula da Silva foi aberta com elementos da literatura de cordel, lembrando a origem nordestina do líder trabalhista. O samba-enredo trouxe versos como “a utopia buscando a dignidade/solta o grito da garganta e vem comemorar/ a soberania popular/ felicidade/ o povo unido venceu/ a cidadania resplandeceu/ uma nova era aconteceu”
O 15º campeonato do Vai-Vai foi marcado por um desfile arrebatador e emocionante em homenagem ao talento de uma das maiores cantoras populares do planeta. Por mais que se tenha buscado focar nas canções e não entrar na forte biografia política da cantora (que teve grandes embates com o quadro político da Ditadura Militar, foi presidente da ASSIM – Associação dos Instrumentistas e Músicos e filiou-se ao PT em 1980), lá estava no samba a menção a “O Bêbado e a Equilibrista”, metáfora da ditadura que falava do sonho da volta do ”irmão do Henfil” (nada menos que o sociólogo Betinho, que foi exilado pelo regime no Chile).
“É coisa de pele/ é coisa de preto”. O festejado samba da Tom Maior para o carnaval 2020 resgatou a sede por justiça e igualdade para o povo preto. E trouxe, em uma de suas alegorias, a eloquente escultura em homenagem à socióloga e vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, época em que denunciava os abusos sofridos pelas comunidades carentes, por parte de policiais.
“É preciso lutar, exaltando Penhas e Marias/ Que clamam por direitos, igualdade/ Essa é a Tua vontade”. A aula, digo desfile da Mancha Verde no Carnaval 2020 tratou, com elegância, da necessidade de justiça e de perdão. Elegante, mas afiado: uma alegoria com uma balança pendia representantes de diversos segmentos da sociedade que sofrem perseguição e injustiça. Falar que só amor pode curar o mundo, em tempos atuais em que o ódio e a intolerância parecem instituídos e oficializados, é mais que um ato de rebeldia e coragem política!
O dia chegou! A Águia de Ouro é a atual campeã do Carnaval Paulistano, que conquistou este título com uma verdadeira porrada sobre o clima de obscurantismo e negação da ciência que vem marcando o imaginário social e político brasileiro. Um enredo sobre o conhecimento, o saber aprendido dos livros, das descobertas, do conhecer a história para não fazer errado, das consequências do mau uso do conhecimento, que pode virar guerra, destruição! Fazer um enredo dessa magnitude não é apenas um oba-oba de carnaval, mas sim um posicionamento, um compromisso da escola de samba em oferecer, além da diversão e entretenimento, formação cultural! E isso é, revolucionariamente, político!
Bem, chegamos ao fim dessa resenha… E olha que só falamos aqui de desfiles do Grupo Especial, o que será que já não foi feito em outros grupos, em se tratando de enredos com questionamentos éticos, sociais, cidadãos e políticos?
Fábio Parra é administrador, arte-educador, especialista em História da Arte pela USJT, mestre em Artes Visuais pelo IA-Unesp, professor, enredista, diretor cultural do G.R.C.E.S. Mocidade Alegre e da SASP.