Muitos sambistas mais jovens da Pauliceia – atualmente pouco – desvairada têm demonstrado indignação, ao ver os dirigentes de suas agremiações declararem apoio amplo, geral e irrestrito para o atual prefeito nestas eleições municipais de 2020. Estão indignados apenas os que não procuram – ou não curtem – estudar História, pois esse “casamento” rola desde 1935 com pouquíssimas crises registradas.
Quando o prefeito Fábio Prado criou o Departamento de Cultura e Recreação, em maio de 1935, nomeou como seu diretor nada menos que o poeta modernista Mário de Andrade (que, como bem lembrado na letra de um samba-enredo famoso lá do Rio, tinha como missão de modernista, mostrar ao mundo o perfil do brasileiro, malandro, bonito, sagaz e maneiro, que canta e dança, pinta e borda, e é feliz… E resgataram a nossa cultura, a beleza do folclore…).
Chegou assim o carnaval de 1936, oficializado pela prefeitura, com sua democrática diversidade de categorias: desfile de automóveis chiques na Av. Paulista, bailes populares na avenida São João (durante o dia) e desfiles de Grandes Sociedades (carros alegóricos puxados por burros) e Cordões (à noite). Tribuna de honra, desfile parando em frente ao palanque da prefeitura para coroação da rainha do cordão e premiação, patrocínio de rádios e tudo e tal…
Nem nos difíceis anos do Estado Novo, com o Brasil envolvido na II Guerra, seu carnaval foi abandonado pela prefeitura. A pesquisadora Zélia Martins da Silva (veja referência na bibliografia) registra que o prefeito Prestes Maia (1938- 1945) reforçou a iluminação das Avenidas São João e Rangel Pestana e, ainda, definiu a montagem de outros espaços cenográficos que também se tornaram palcos dos festejos, como os tablados na Praça da Sé e no Largo da Concórdia, embora o prefeito não pretendesse alocar recursos visando à institucionalização das folganças.
Em sua primeira passagem como prefeito de São Paulo, o folclórico Jânio Quadros inseriu o Carnaval de 1954 nos Festejos Oficiais do IV Centenário de São Paulo. O concurso de cordões aconteceu no recém-inaugurado Parque do Ibirapuera e teve, como campeão o renascido cordão Camisa Verde e Branco (título ainda hoje relembrado com orgulho pela Velha Guarda do Camisa). Esse campeonato tem um sabor especial pelo fato de o cordão ter sofrido perseguições durante o governo de Getúlio Vargas (confundido com os “camisas verdes”, apelido dado aos simpatizantes da Ação integralista Brasileira) que culminaram com a desativação do cordão por 17 anos.
A transformação da identidade do carnaval paulistano (que até meados da década de 60 era marcada pelos cordões) em um carnaval de escolas de samba se deu na gestão do prefeito Faria Lima, um carioca nascido em Vila Isabel e apaixonado pela festa (na foto de capa). Faria Lima teve, em sua gestão, uma verdadeira fixação em reforçar a identidade da cidade, que acabara de se tornar a mais populosa e mais rica do país. Prova disso foi o concurso para escolha de um calçadão que simbolizasse a cidade, assim como o famoso Calçadão de Copacabana (que, embora não fosse concluído, teve a proposta de Mirthes Bernardes consagrada e praticada até hoje). Mas isso é outra história… Faria Lima queria que a cidade fosse atraente e que a paulistanidade tivesse visibilidade internacional. Em sua busca para alavancar o carnaval da cidade, promoveu, com o auxílio dos radialistas Moraes Sarmento e Evaristo de Carvalho, uma remodelagem na forma paulistana de fazer carnaval. O novo carnaval de São Paulo deixava de pertencer à pasta da Cultura para ser gerenciado pela Secretaria de Turismo e Fomento. Desprezando a tradição dos cordões da cidade, convidou os mesmos a se tornarem escolas de samba, com um regulamento copiado do modelo carioca de escolas de samba. A cidade já tinha escolas de samba, que participavam de concursos não oficializados, mas promovidos por rádios. Por este motivo, Nenê de Vila Matilde, Unidos do Peruche e Lavapés ostentam títulos anteriores a 1968.
Três cordões resistiram a princípio: Vai-Vai, Fio de Ouro e Camisa Verde e Branco. E não participaram dos primeiros concursos oficiais de escolas de samba. Mas por pouco tempo, pois as escolas de samba, a partir dessa nova oficialização de 1968, passaram a receber subvenção para fazer seus desfiles, que se tornaram rapidamente mais populares. E em 1972 os três cordões mudaram seus estatutos e passaram a concorrer como escolas de samba.
Parceiras oficiais da prefeitura, muitas escolas de samba enfatizaram a cidade como tema dos seus enredos, como a Lavapés em 1968, terceira colocada com o enredo “São Paulo, Passado, Presente e Futuro” e terceira colocada novamente em 1969 com “São Paulo Antigo e São Paulo Moderno”. Em 1970, a Nenê de Vila Matilde se fez tricampeã com seu enredo “Pauliceia Desvairada”. A estréia da Mocidade Alegre, tricampeã em 1971, 1972 e 1973 contou com dois enredos de paulistanidade: “São Paulo e Seus Carnavais” (1971) e “São Paulo, Trabalho, Seresta e Samba”(1972).
Esse tricampeonato da Mocidade Alegre, escola tradicionalmente alinhada à prefeitura, mostra muito do novo paradigma que a escola de samba impôs e tanto a difere dos cordões, ao percebermos o depoimento dado, em 1971, pelo então tesoureiro da Mocidade Alegre (Carlos Cruz Bichara) ao explicar os procedimentos adotados pela agremiação para o desfile de 1971: “Elemento sem educação, bebedor de pinga que não saiba manter a disciplina não pode desfilar. […] Por isso a bateria da Escola que deveria entrar com 60 pessoas perdeu 10 bateristas (ritmistas) por falta de comportamento.”
Não podemos falar aqui de manobras eleitorais ou eleitoreiras nessa parceria, pois de 1969 a 1985, por conta dos impedimentos da Ditadura Militar, não havia eleições para prefeito nas capitais.
Já no período de redemocratização, o último prefeito biônico Mário Covas – poucos anos depois de reconquistar seus direitos políticos – mostrou uma relação carinhosa com as escolas de samba e não escondia sua paixão pelo Camisa Verde e Branco, e fazia questão de acompanhar a passagem da escola na Avenida Tiradentes, ao lado de sua esposa Dona Lila, no gradil que separava a pista do corredor de imprensa, bem em frente ao antigo prédio da Escola Politécnica (atual Fatec). Acompanhava cantando o samba enredo, chorando, sambando com os olhos (era ruim de dança). Foi na gestão de Covas que o presidente da Paulistur (antiga Secretaria de Turismo e Fomento e atual SP-Turis) era ninguém menos que o jovem João Dória Junior.
E foi na gestão do Covas e sua efervescência cultural (época do Teatro Lira Paulistana, dos grupos musicais da vanguarda, da cidade abrigando festivais de música, sendo cenário de filmes e novelas) que a Rosas de Ouro (já grande e respeitada) apresentou três carnavais maravilhosos tendo a cidade como tema (“Nostalgia” em 1983, “A Velha Academia – Largo São Francisco” em 1984 e “Uma Boa Idéia – Av. São João” em 1985). O poderio mostrado pela escola ditou o novo jeito de desfilar e de fazer enredo, resgatando a paulistanidade que se seguiu por uma década: “São Paulo 100 Anos Depois” (1986), “São Paulo, Seu Povo e Sua Gente” (1987), “Carvalho, Madeira de Lei” (1988), “Vera Cruz, a Vedete dos Anos 50” (1989), “Até que Enfim é Sábado” (1990) e “Non Dvcor Dvco, Qual é a Minha Cara? (1992).
Fim da Ditadura… primeira eleição direta para prefeito de São Paulo em 1985. E a cidade fundada em 25 de janeiro, fez jus à fama de ser contraditório dada aos aquarianos, teve um arroubo de conservadorismo e elegeu nada menos que Jânio Quadros, o da vassoura, que desprezou o quanto pôde o carnaval paulistano de 1986. Chegou a por uma urna na Galeria Prestes Maia onde os cidadãos que passavam em frente eram convidados a votar se a cidade deveria ou não ter desfiles de escolas de samba. Isso tudo com as arquibancadas tubulares já em avançado estado de montagem na Av. Tiradentes. As arquibancadas ficaram sem cobertura, a decoração foi instalada pela metade… O “casamento” do carnaval paulistano com a prefeitura enfrentava sua primeira crise.
As escolas se viraram. Em 1986 foi criada a Liga-SP, separando as 10 escolas do Grupo Especial da UESP e mudando a data do desfile do Grupo 1 (que passou a se chamar Grupo Especial) para o sábado, com transmissão da TV Globo. Jânio, já antipopular por suas posturas nada sensíveis à cultura popular, saiu da prefeitura deixando apenas 32 mil cruzados (que em janeiro se transformaram em 32 cruzados novos) de verba para o carnaval de 1989.
São Paulo, com a mesma vontade de “ver o circo pegar fogo” que colocou o maluco das vassouras na prefeitura, deu uma guinada e elegeu Luiza Erundina. Os conservadores que morriam de medo da “comunista” (inclusive do mundo do samba) tiveram que engolir a empreitada dela para realizar o carnaval de 1989, a impressionante construção do Sambódromo do Anhembi, e a reforma do autódromo de Interlagos (em parceria com a iniciativa privada… estão vendo como esquerdistas não são anti-empresas?).
Mas poucas escolas de samba deram a mão à prefeita e disputavam lugar para tirar fotinho ao seu lado. E nem lhe agradeciam pela altíssima qualidade conquistada pelas escolas municipais de ensino fundamental, onde estudavam a maioria dos filhos dos sambistas. Diferente dos prefeitos que se seguiram (Paulo Maluf e Celso Pitta), onde se formaram verdadeiros nichos eleitorais (a palavra curral é meio indelicada né? Nós sambistas gostamos de glamour…). Surgiram assim os super-vereadores que fizeram das comunidades seus eleitorados e seus staffs na câmara, como Hannah Garib e Maria Helena. E surgiram cenas constrangedoras para os sambistas nos últimos meses da gestão Pitta: com 83% de reprovação, Celso Pitta voltava de seus julgamentos e afastamentos do cargo carregado por diretores de escolas de samba…
Nova guinada em 2000: a cidade se vinga de Maluf e Pitta escolhendo Marta Suplicy – aquela dos CEUs, do Bilhete Único e dos aparelhamentos sociais – como prefeita. Mesmo sem vereadores aliados a ela fazendo das quadras de samba um curr… digo nicho eleitoral, houve um imenso incentivo aos projetos sociais. E foi em 2004, último ano de sua gestão, que as escolas de Samba, assim como em 1954, fizeram parte dos festejos dos 450 anos de São Paulo. Todas as escolas apresentaram enredos ligados à história e à identidade da cidade.
O que vem depois disso os mais jovens já sabem – ou será que já esqueceram? Eu não entendo a falta de memória das pessoas… será que é baixa auto-estima? – Marta foi sucedida por Serra, Kassab, Haddad, Dória e Bruno…
Encerro convidando os jovens ao prazer de consultar pesquisas acadêmicas e contar um segredo: quando você pesquisa, anota, compara textos que são frutos de pesquisa (artigos acadêmicos), sua opinião fica mais fundada e ganha a propriedade e autoridade de um “parecer’, de um “diagnóstico”. Mas quando sua opinião é fundada somente no que você ouviu falar ou naquilo que você acha, ela se torna tão pobre e perigosa quanto um “palpite”. Não desvalorize sua visão e seu relacionamento com a vida e com o mundo. Comece a ler.
Para escrever esse texto, eu consultei – além da minha memória e minha paixão pelo carnaval e pela cidade – esses textos abaixo, localizados pelo Google. “Bora” ler:
UM TURBILHÃO SUBLIME: MÁRIO DE ANDRADE E O DEPARTAMENTO DE CULTURADE SÃO PAULO (EDUARDO AUGUSTO SENA): http://www.iea.usp.br/pesquisa/catedras-econvenios/catedra-olavo-setubal-de-arte-culturaeciencia/textos/catedraos_eduardo_sena_mario_de_andrade_final
DA AVENIDA SÃO JOÃO À AVENIDA TIRADENTES: uma análise das representações jornalísticas sobre a reconfiguração dos desfiles carnavalescos da cidade de São Paulo (1967-1977) (Tese de Mestrado): https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOSB2BK86/1/tese___denis_terezani___vers_o_final___ufmg_word.pdf
OS CARNAVAIS DOS PAULISTANOS DA DÉCADA DE 1940 NAS RUAS E NOS CLUBES DA CIDADE (livro) – Zélia Lopes da Silva: http://books.scielo.org/id/fmyd3/pdf/silva9788568334546-02.pdf
Fábio Parra é mestre em Artes pela UNESP(2005), especialista em História da Arte pela USJT (2001), arte-educador, diretor cultural da Mocidade Alegre e da SASP