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Opinião – Quando a gira, girar!

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Por Leonardo Dahi

Uma escola de samba, quando pisa na avenida, está fazendo muita coisa ao mesmo tempo. Está, em uma definição simplória, produzindo um espetáculo artístico de grandes proporções; está, dentro do espírito da competição, defendendo uma ideia para conquistar um campeonato; está, considerando que até o mais alienado dos seres humanos é um ser político, se posicionado diante do contexto no qual está inserida; está promovendo uma manifestação artística genuinamente brasileira; está levando cultura a sua comunidade; está, ao mesmo tempo, provocando um entretenimento de ocasião para turistas (alguns deles da própria cidade, inclusive). Tudo isso é verdade.

Mas quero aqui, aproveitando o embalo da reta final de preparação das escolas para os desfiles e consequentemente o período mais pulsante dos ensaios técnicos no Anhembi, chamar atenção para outra coisa que uma escola de samba faz quando cruza a faixa amarela: cada uma daquelas escolas, ainda que desfile por ela mesma, está ajudando a desenhar o estado de espírito de uma instituição abstrata e, portanto, muito mais poderosa. É esse tal de carnaval de São Paulo.

O carnaval de São Paulo não tem pavilhão, símbolo, nem cor. Mas existe e está presente na vida de todos nós, de modo que é fundamental enxergá-lo para além de uma abstração. E a melhor forma de fazer isso é observando atentamente uma escola de samba na pista do Anhembi. São elas que constroem, de maneira conjunta, o que é o carnaval de São Paulo a cada ano.

Ao tentar fazer essa análise, imaginei como seria se o carnaval de São Paulo fosse uma figura humana deitada em um divã e encorajada a fazer uma auto-reflexão a respeito da sua vida, sua obra e, de maneira associada, o seu “hoje”. Tenho a clara impressão de que, embora reverbere aos quatro cantos um orgulho desmedido, uma grande alegria em viver o pretenso melhor momento de sua vida, o carnaval de São Paulo é uma pessoa triste, incompleta, que vive um imenso “vazio”. É essa sensação que as agremiações, amarradas a um regulamento tirano, despertam em mim quando passam nos ensaios técnicos e, em grande medida, no desfile também.

Em uma dessas ironias da vida, justamente no período em que superou quase todos os perrengues acumulados ao longo de mais de meio século, o nosso bravo herói foi se tornando uma figura cada vez menos alegre, sisuda, pesada. 

Por outro lado, nunca antes o desfile das escolas de samba de São Paulo foi tão rico. Jamais a mídia, representada mais fortemente pela emissora que transmite os desfiles, dedicou tanto espaço em sua programação às escolas paulistanas. Hoje, quem passa pelo Anhembi constrói tantas alegorias quanto quem passa pela Sapucaí – mas com mais dinheiro. O tempo de desfile está cada vez mais próximo. O Grupo Especial tem uma escola a mais. Não é exagero, portanto, que se diga que em termos de tamanho (e não de proporção, que são coisas muito diferentes) os dois espetáculos têm tamanhos muito parecidos, algo certamente inimaginável há uma década.

É um sujeito bem-sucedido o carnaval de São Paulo, não tenha dúvida. Um sucesso que ele não esconde. Institucionalmente se posiciona orgulhoso de tudo o que conquista. Mas vamos voltar ao início deste texto: pra saber o que se passa no íntimo dessa figura, precisamos observar as escolas na avenida. E é aí que fica claro como esse orgulho é artificial e, portanto, bobo. Ao ver as escolas desfilando amarradas em coreografias rígidas, ao ver desfilantes ora com uma expressão de incrível cansaço, ora com uma pretensa “valentia” que resvala praticamente na raiva, fico me perguntando: de que adianta tanto dinheiro e tanta atenção da mídia? Não éramos mais felizes no Anhembi em tempos de vacas mais magras?

Vamos organizar melhor as ideias. Dinheiro não traz infelicidade. O ponto aqui é outro: a troco do que o carnaval paulistano atingiu essa suposta evolução? No dia em que se decidiu que uma escola de samba poderia ser rebaixada pela altura da meia de um integrante da comissão de frente, o desfile das escolas de samba passou a ser um espetáculo rígido, extremamente técnico e, portanto, longe daquilo que se pode chamar de carnaval na essência.

O conformismo geral manda dizer que Vai-Vai, Nenê de Vila Matilde, Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche e tantas outras escolas estão em situação delicada por conta dos erros de seus dirigentes. Não está de todo errado. No entanto, cabe refletir sobre esse processo de maneira mais ampla. À medida que as subjetividades foram eliminadas do processo de julgamento, a competição passou a ser definida não a partir de quem faz melhor, mas sim a partir de quem faz o que se propõe a fazer. Nesse momento, as escolas paulistanas foram obrigadas a se moldar a partir do óbvio – que, por ser óbvio, têm chance muito menor de fugir do planejado. 

Quando 14 escolas somam todos os 60 pontos possíveis nos quesitos bateria e samba-enredo, o desfile, do ponto de vista da competição, deixa de ser de escola de samba e passa a ser meramente visual. E, para piorar, não é nem mesmo questão de ser bonito ou feio, de ter valor artístico ou não. É só uma questão de demonstrar capacidade de artístico ou não. É simplesmente uma questão de ter capacidade logística para colocar na pista o que se desenhou na pasta.

Esse modelo de desfile, ao mesmo tempo em que massacrou agremiações tradicionais, criou novos “leões”, novas potências, que jamais atingiriam qualquer resultado relevante caso o espetáculo fosse avaliado a partir de premissas básicas do desfile das escolas de samba. Esses “leões” passaram a tomar conta do pedaço não apenas pela capacidade de organização, mas também pela capacidade de estimular o espírito da competição em uma cidade onde se compete o tempo todo por tudo.

A competição faz parte da vida das escolas de samba. É natural. Mas o espetáculo é, ou foi um dia, diferente dos outros justamente porque é um formato de competição que premia o mais alegre. Para premiar o mais valente já basta o boxe. No entanto, a regra aqui em São Paulo lamentavelmente é preparar o componente para uma guerra. Guerra é algo que exige sacrifício e, portanto, é ela quem justifica uma rotina insana de ensaios. Temos escolas que ensaiam três vezes por semana por seis meses. Sendo assim, não chega a ser surpreendente que tão pouca gente sorria enquanto desfila.

Já repararam nisso? Já repararam como é raro ver um sorriso durante um ensaio de uma escola paulistana? Nada disso é por acaso.

Há quem goste, imagino. O crescimento de popularidade dos desfiles paulistanos indica o sucesso dessa mudança de perfil. Admito, pois, a minha derrota. O meu carnaval, o carnaval no qual eu acredito, está superado.

Mas, ainda que derrotado, proponho uma reflexão: por quanto tempo esse modelo é sustentável? Por quanto tempo mais teremos 14 escolas cooptando 2 mil pessoas dispostas a encarar esse número absurdo de ensaios e essa pressão insana pelo movimento absolutamente preciso?

Por quantos anos alguém suporta ensaiar tanto tempo cantando sambas que ano a ano repetem estruturas melódicas previsíveis e descrevem os enredos praticamente sem nenhuma margem poética?

Considerando que só uma escola ganha por ano, por quanto tempo os presidentes das escolas derrotadas vão conseguir continuar convencendo os seus desfilantes de que é fundamental abrir mão de metade dos sábados do seu ano para se preparar pra essa guerra?

Até quando o público vai suportar assistir pela televisão uma apuração em que uma dúzia de jurados aplica 10 a todas as escolas?

Quanto tempo vai demorar para o conservadorismo que impera em São Paulo criar uma versão paulistana de Marcelo Crivella? Temos algum motivo para acreditar que um eventual fim do patrocínio da prefeitura teria efeito menos catastrófico que o hoje observado no Rio de Janeiro?

Ok, pode parecer discurso de perdedor. Mas, derrotado que sou, quero fazer uma sugestão ao carnaval de São Paulo: volte a olhar com carinho pra quem faz samba de verdade. Volte a valorizar quem sabe desfilar como escola de samba e não como uma parada militar. Não deixe a ilusão desse tempo de vacas gordas acabar com quem está de fato interessado na arte carnavalesca. Façamos do nosso carnaval um espetáculo alegre, de samba no pé. Façamos sambas de enredo com identidade própria, que facilitem a dança do samba e não a coreografia. Que o componente padrão seja não o que ensaia 200 vezes por ano para botar medo nos adversários, mas sim o que encara aquela avenida sem medo de ser feliz.

Porque quando a gira girar – e a história registra que ela sempre gira – e ninguém suportar, só essas pessoas estarão ali provando a certeza de seu amor.

Para isso acontecer, no entanto, elas precisam existir. O modelo de desfile gestado por quem comanda o carnaval de São Paulo pode parecer muito auspicioso, mas no fundo está dizimando quem é capaz de garantir à festa a eternidade que lhe foi predestinada.

Se esse projeto for concluído, é tudo ou nada. Quando e se acabar o interesse nesse modelo militarizado, não sobrará nada além das memórias.

 

Leonardo Dahirepórter e produtor do esporte da CBN e da Rádio Globo; entre a TV e o Anhembi e da infância à vida adulta, assiste e estuda os desfiles das escolas de samba de São Paulo há mais de 15 anos

Botequim da SASP